Por Prof. Osvaldo Soliano Pereira, Professor Adjunto – UFBA
Prof. Ricardo Ruther, Professor Titular – UFSC
Dra. Tereza Mousinho Reis, CBEM.
O Brasil sempre teve um histórico de um maior uso das fontes renováveis convencionais de energia que a média mundial. Mas para o setor elétrico, os primeiros incentivos efetivos para as novas renováveis apareceram com a redução mínima nas tarifas de utilização dos sistemas de transmissão e distribuição e a expansão do conceito de consumidores livres para aqueles com cargas superiores a 500 kW, que fossem atendidos pelas novas renováveis.
Em 1998, o subsídio à produção de energia nos sistemas isolados – Conta de Consumo de Combustíveis (CCC) – é expandido para fontes que pudessem promover a redução de custos da CCC: a sub-rogação. Mas esse incentivo se mostrou inócuo no sentido de expandir o uso das fontes renováveis porque efetivamente a geração com essas fontes, à época, era muito mais cara do que a geração à diesel. Mesmo mais recentemente, com a redução de custos a níveis altamente competitivos de fontes renováveis como a solar fotovoltaica, a percepção dos PIE do SISOL é que a adoção destas tecnologias no contexto da sub-rogação é o equivalente a “trocar seis por meia dúzia”, tendo em vista seus contratos firmados em função dos resultados de leilões com base na geração diesel.
Somente em 2002, o Brasil introduziu o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA), um incentivo direcionado e efetivo para as fontes eólica, de biomassa e de pequenas centrais hidrelétricas, com um componente de tarifas prêmio (feed-in tariffs) e uma cota mínima de 1.100 MW para cada fonte contemplada, numa aquisição que vai se consumar em 2004. A iniciativa foi um sucesso e fez deslanchar a indústria nacional dessas três fontes, em particular a energia eólica. A Lei não contemplava a energia solar.
Em 2004, a Lei 10.848 estabelece os leilões de energia de reserva que são flexíveis para permitir leilões específicos e a possibilidade de tratamento diferenciado para as novas renováveis. Em 2007 acontece um primeiro leilão de fontes alternativas em que apenas usinas a biomassa e de PCH são contempladas. Em 2008, um leilão reserva novamente contempla apenas biomassa e, finalmente, em 2009 acontece o primeiro leilão de energia eólica.
A partir daí a eólica participa majoritariamente de todos os leilões anuais de energia até 2015 quando acontece o primeiro leilão específico de energia solar. A sistemática de leilões específicos se consolida como um sucesso, na medida que coincide com a queda sistemática dos preços das fontes eólica e solar nos mercados globais. Portanto, as dinâmicas com viés pró novas renováveis foram fundamentais para o sucesso dessas duas fontes na integração ao Sistema Interligado Nacional (SIN), chegando ao ponto de não se fazerem mais necessários os leilões específicos. Mas esta história de sucesso acontece apenas para o SIN, deixando de fora os Sistemas Isolados que estão localizados basicamente na região Amazônica, com praticamente 100% de sua energia de origem do diesel.
Se no lado do SIN, os incentivos focados resultaram em resultados significativos, nos Sistemas Isolados, as ações neutras, ajustando-se à dinâmica prevalente pró-diesel, os tornaram absolutamente inócuos. O modelo de Sub-rogação da CCC foi basicamente utilizado para cobrir despesas de investimentos em empreendimentos destinados à interligação ao SIN. Com efeito, atualmente menos de 2% dos recursos da CCC são destinados para a sub-rogação, mecanismo que deveria estimular a substituição da geração a combustível fóssil por renováveis. Um mecanismo de precificação de carbono, uma quota nos leilões da região ou um viés pró-renováveis na CCC seria uma fórmula para acelerar a transição energética na Amazônia.
Um avanço neste sentido é proposto pela MP 998/2020, que no seu Artigo 4º estabelece que o “Poder Executivo federal definirá diretrizes para a implementação de mecanismos para a consideração dos benefícios ambientais relacionados à baixa emissão de gases de efeito estufa, para o setor elétrico”. Em direção similar a ANEEL pôs em audiência pública os ”Critérios para adição de fonte renovável em usinas a diesel nos sistemas isolados”, mas enquanto isso o tratamento concreto dado às renováveis e ao gás natural é exatamente o mesmo nos leilões para a região: nem quota para renováveis, nem leilão específico nem sobre-preço pelo CO2 emitido.
Portanto, a transição energética para a Amazônia requer não apenas opções tecnológicas sustentáveis do ponto de vista socioeconômico e ambiental, mas também novos arranjos regulatórios e/ou adequação daqueles utilizados para a inserção das novas e renováveis que como mostra o World Energy Outlook 2020 da Agência Internacional de Energia serão as fontes primordiais para geração de energia elétrica em futuro não distante, e a Amazônia não precisa esperar o futuro para dar o seu salto tecnológico (leapfrog) energético.
A conjuntura não recomenda a ampliação dos subsídios atualmente existentes no setor elétrico, mas novas ações específicas se fazem necessárias. As Fontes Renováveis Variáveis (FRVs) – solar e eólica – comprovaram, nos últimos leilões do SIN, competitividade para fornecer energia elétrica na quantidade e preço necessários para atender ao mercado e contribuir para a modicidade tarifária. Agora faz-se necessário dar a mesma oportunidade aos Sistemas Isolados, ainda que algum apoio adicional seja necessário para incentivar o armazenamento nesse período inicial. Claro que o padrão nacional que evoluiu do modelo PROINFA para os leilões específicos pode ser adotado para os Sistemas Isolados já para o leilão a ser realizado em abril de 2021.
Obviamente as barreiras a serem enfrentadas são significativas. O viés em direção ao diesel inclui diversos atores, cujos interesses certamente serão afetados. A receita advinda de sua comercialização é uma importante fonte de receita dos ICMSs estaduais. Nos casos dos estados do Amazonas e de Roraima, as concessões de distribuição foram vencidas por um consórcio entre uma empresa de instalação de sistemas de geração a diesel e uma comercializadora de derivados de petróleo, o que consolida o viés para a geração diesel, ainda que a nova energia seja adquirida sempre através de leilões competitivos.
O estado de Roraima tem a perspectiva de tornar-se um exportador de energia hidrelétrica e de FRVs para o SIN e, nesse processo, pode, já nesse momento, reservar uma parte da energia a ser adquirida no leilão de 2021 com tecnologias de FRV que detêm os menores preços no Brasil, mas que aos Sistemas Isolados devem ser acoplados sistemas de armazenamento, que no médio prazo vai permitir incorporar os atributos de armazenamento numa ponta extrema do SIN.
Para o caso de regiões muito mais remotas e de pequena carga, a criação do Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica na Amazônia Legal – Mais Luz para a Amazônia, ao prever o uso de FRVs aponta um novo direcionamento, estabelecendo que o fornecimento aos domicílios não atendidos e eventuais substituições de geradores movidos a combustíveis fósseis se façam com o uso das FRVs. Vai além, portanto, da neutralidade do Programa Luz para Todos, que apesar de ter viabilizado no início a instalação de SIGFIs, ao final, inviabilizou esta alternativa e restou como única opção a extensão da rede.
Em resumo, as iniciativas, implementadas pró novas renováveis, em particular aquelas com um viés bem claro (Proinfa e leilões específicos) funcionaram adequadamente para elevar a participação dessas fontes no SIN. Já os instrumentos voltados para a região foram neutros, particularmente a sub-rogação da CCC. O MLA, a depender de como seja implementado, poderá abrir espaço para ampliação das FRE em áreas remotas e não atendidas, ou precariamente atendidas com geradores à combustível fóssil, na Amazônia Legal.
O leapfrog em algumas áreas da Amazônia Legal poderia passar pela consolidação do conceito de sistema isolado renovável (SIR) baseado em FRE, inclusive com solar com baterias, representando um salto tecnológico, na direção de uma transformação energética. Os novos contextos socioeconômicos e ambientais estão a exigir uma variada gama de opções tecnológicas de fornecimento, em particular, na região amazônica, não se restringindo às opções convencionais de interligação via grandes linhas de transmissão ou transporte de gás natural liquefeito. Em alguns estados, como no caso de Roraima, a interligação pode servir, no longo prazo, como viabilizadora de um polo exportador de energia, em contraposição à solução via gás liquefeito que apenas consolida uma solução de dependência externa de uma fonte emissora de GEEs tanto na geração como no transporte ao longo de mais de 1000 km. A mencionada transformação poderia ser conseguida, por exemplo, com um modelo de sub-rogação modificada, com direcionamento para as FREs associadas ao armazenamento em baterias, combinado com um mecanismo de precificação de carbono.
O recente caso do Amapá deixa lições sobre a necessidade de alternativas a uma mera interligação de um sistema de transmissão radial, mantendo fontes de produção local, incluindo o uso de baterias. Nesse sentido, no curto prazo, parcerias com os consórcios vencedores daquele leilão em Roraima, dentro do que definiu o edital deste leilão de que o ofertante poderia migrar para uma fonte renovável e pleitear a sub-rogação, poderia ser um passo importante tanto para garantir a segurança energética como um incentivo à redução das emissões de gás de efeito estufa. Para tanto, buscar o apoio financeiro dos fundos climáticos serviria para evitar que a migração onere os custos finais de produção. Neste contexto, projetos que sejam vistos pelos empreendedores locais como provas de conceito ou provas de risco destas novas tecnologias como solar + baterias são urgentes, para que os PIEs do SISOl deixem de lado a percepção de que fazer uso da sub-rogação da CCC seria “trocar seis por meia dúzia” e passem a adotar estas novas tecnologias que não somente fazem sentido ambiental, mas sobretudo fazem sentido econômico.