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O último passo para conectar Roraima

Veículo Valor Econômico
Data 22 de Outubro de  2019
Autores Claudio J. D. Sales

Com lamentável frequência, o setor elétrico brasileiro é afetado por situações em que imperfeições na legislação, na regulação ou em atos de governos produzem imbróglios com consequências e custos para consumidores, empresas e para os próprios formuladores de políticas públicas.

Este é o caso da linha de transmissão de 725 quilômetros, conectando Manaus a Boa Vista, leiloada em setembro de 2011, cujo contrato de concessão foi assinado em janeiro de 2012, com previsão de entrar em operação após 36 meses – em janeiro de 2015 – mas que, até hoje, não saiu do papel.
No traçado dessa linha há 123 quilômetros que atravessam parte da reserva indígena Waimiri Atroari, margeando uma estrada federal já existente, a BR 174.
De acordo com o contrato de concessão, cabe ao empreendedor a obtenção das licenças ambientais, a começar pela Licença Prévia (ou “LP”, que define a viabilidade socioambiental do projeto) e a Licença de Instalação (ou “LI”, que autoriza o início das obras).

Depois de muita insistência se conseguiu a LP, mas até hoje não se conseguiu a LI, necessária para começar as obras, porque o governo federal não havia liberado o acesso à terra indígena para a realização dos estudos necessários.
Boa Vista, no estado de Roraima, é a última capital brasileira que ainda não está conectada ao Sistema Interligado Nacional, o chamado “SIN”, uma grande malha de transmissão que torna possível ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) buscar a alternativa de maior segurança e menor custo para o suprimento de energia elétrica.

Uma vez que Roraima ainda não faz parte do SIN, o abastecimento daquele estado depende de importação de energia da Venezuela – que tem reduzido a entrega e dificilmente renovará o contrato – e de usinas termelétricas de alto custo instaladas no estado.

As termelétricas movidas a óleo diesel instaladas em Roraima, que deveriam atuar de forma complementar, têm sido acionadas de forma contínua e, segundo o Ministério de Minas e Energia, consumirão em 2019 um milhão de litros por dia, ao custo de R$ 1,9 bilhão. Além disso, as usinas recém-contratadas para suprimento de Boa Vista a partir de 2021 terão um custo fixo anual de R$ 790 milhões mas, segundo dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, este custo poderá chegar a R$ 1,65 bilhão por ano caso estas termelétricas sejam acionadas todo o tempo. Como se trata de um Sistema Isolado, a legislação prevê que este sobrecusto seja coberto por encargo na conta de luz, pago pelos consumidores brasileiros de todos os estados.
São evidentes as razões que justificam a implantação dessa linha de transmissão: maior confiabilidade de suprimento e economia próxima de bilhão por ano. É evidente também que o atraso se deveu à impossibilidade de o governo autorizar os estudos para o início da obra, pois cabia à Funai a emissão de um termo de referência para a realização dos estudos que, por sua vez, dariam ao Ibama a condição para licenciar o início da obra.
O empreendedor, por sua vez, foi diligente no encaminhamento do processo de licenciamento ambiental e, mais ainda, incorreu nos custos da aquisição dos cabos da linha de transmissão e da construção de uma subestação em Boa Vista.

Essa situação kafkiana pareceu ter fim graças a uma iniciativa recente do governo, que enquadrou o projeto como de interesse nacional para retomar o processo de licenciamento ambiental.

Em paralelo, a comunidade indígena atingida, os Waimiri Atroari, restabeleceu o diálogo com a Funai e com os empreendedores para acordar uma forma de compensação que lhes seja satisfatória. Houve um acordo e os empreendedores comprometeram-se a atender às demandas dos indígenas quanto aos investimentos que asseguram a sustentabilidade da etnia por muitos anos e, também, quanto à modificação do projeto, alteando as torres para 110 metros no trecho da reserva, minimizando assim o impacto ambiental.

Com as mudanças acima, a linha projetada afetaria diretamente cerca de 50 hectares, ou cerca de 0,002% da reserva Waimiri Atroari, que tem 2.500.000 hectares, uma área indígena de dimensões intermediárias entre as dos estados de Sergipe e Alagoas.

O último passo para finalmente conectarmos Roraima ao Brasil é o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato que foi corroído por tantos anos de atraso. Tudo conforme prevê a legislação, e com o amparo de pareceres da Advocacia Geral da União (AGU).
Coube à Aneel, agência reguladora, decidir sobre o montante de investimento reconhecido como necessário para construir a linha de transmissão nas condições atuais. No entanto, o regulador, em decisão recente, estabeleceu um valor para a receita anual permitida (RAP) que, segundo os empreendedores, está distante de remunerar o capital total a ser investido.
Analistas financeiros apontam que, nas condições estabelecidas pela Aneel, a taxa interna de retorno do empreendimento ficaria na ordem de 2,2%, o que é sinônimo de destruição de valor quando são considerados o custo de oportunidade do capital e os riscos envolvidos no empreendimento.
A diferença entre a receita anual que o empreendedor julga necessária para construir a linha a partir de agora e o que a Aneel reconhece é da ordem de R$ 100 milhões. Esse número contrasta com a economia anual de muitas centenas de milhões que os consumidores teriam se pudessem contar com a linha de transmissão.
A Aneel, cujas boas práticas e rigor analítico têm contribuído para a modicidade tarifária, tem diante de si uma oportunidade para, além de finalmente conectar eletricamente Roraima ao resto do Brasil e diminuir a dependência energética de um país instável como a Venezuela, evitar os custos bilionários que serão impostos aos consumidores brasileiros caso essa linha de transmissão não seja implementada.

Claudio J. D. Sales é o Presidente do Instituto Acende Brasil.